Resistir e inspirar: Um passeio pelas trajetórias prodigiosas dos sãojuliãoenses Carmo Neto e Rômulo Rossy
Provenientes de São Julião, cidade do centro-sul piauiense, os jovens estudantes Rômulo Rossy Leal Carvalho, de 22 anos, e Carmo dos Santos Sousa, de 18 anos, são bons exemplos do poder da Educação Pública. Ambos têm idades próximas, trajetórias semelhantes e origens comuns, tanto em aspectos sociais quanto na formação educacional. Os dois também foram alunos da Escola Estadual Aprígio Pereira Bezerra, onde cursaram o ensino médio.

Rômulo Rossy é licenciado em História pela Universidade Federal do Piauí, mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, imortal da Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR), leigo missionário da Igreja Católica e escritor (poeta, dramaturgo e cronista).

Carmo Neto é estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual do Piauí, produtor audiovisual no maior projeto voluntário de divulgação de oportunidades educacionais do Brasil, o projeto Acadêmicos, voluntário no #tmjUNICEF, redator do portal Piauí em Foco, integrante da Ordem DeMolay e um dos novos membros da Academia Latino-americana de Liderança (LALA) .
Infância
Rômulo: “Sempre que eu vislumbrava o horizonte, minha alma transbordava de comprazimento. Nunca soube ao certo explicar o porquê. Por isso, eu escrevia, e escrevo. Sou um menino do campo e para sempre do campo, da serra, da areia, do cajueiro, da flor do mandacaru, do cansanção que espinha, da arte que forma a miscelânea de sentimentos que justapõem minha existência”, conta Rômulo.
Carmo: “Dizem que o nosso cérebro no final das contas não consegue distinguir a realidade dos pensamentos fantasiosos. Graças a Deus! Foi assim, no mundo das ideias, que os embalos da imaginação me protegeram da realidade. Quando criança sempre andava com um caderno e lápis na mão, pensando e escrevendo de tudo. Sempre fui um menino proativo, curioso, por isso, me contam que eu aprendi a ler em casa aos 03 anos de idade, antes de ir pra uma instituição de ensino. Mas o ambiente escolar sempre foi animador para mim. Acredito que a escola atua como um fragmento de esperança no meio dessa terra seca de oportunidades.” disse Carmo.
Primeiros passos
Rômulo: “Me alfabetizei aos cinco anos, com minha tia materna, Edilene Leal. Sempre gostei muito mais de escrever do que ler – embora a ação de ler e a de escrever, geralmente, estejam condicionadas uma a outra. Mas eu lia, de certa forma, o meu universo, as pessoas à minha volta, os campos, os tempos de inverno, de verão, primavera e outonos da minha existência. Aos sete anos, comecei a escrever quadras de poemas, que foram, a princípio, analisados pelo meu avô materno, Davi Leal, que é poeta. Ele disse: ‘você tem véia poética’. Isso é marcante para quem, ainda criança, sente um sopro de esperança”, conta o escritor.
Carmo: “Desde pequeno eu sempre fui fascinado por criar coisas. E já era aficionado pelo mundo da televisão, do rádio, dos livros, dos filmes, novelas e séries, e sempre me vi atuando na área do audiovisual. Tanto que já costumava, na infância, brincar com os meus amigos de fazermos jornais e programas de TV e também fazia filmes caseiros no celular com os meus primos, onde a gente criava uma historinha qualquer e em seguida a produzíamos em vídeo.” relembra o jovem.
Rômulo: “Gastava de quatro a cinco canetas por mês, e perdia a conta dos caderninhos. Anotava tudo que via e ouvia. Tudo sem nexo, mas eu registrava. Minha mente sempre foi acelerada. Não tinha trégua. Quando ia à roça, nas safras de caju, eu, do alto, olhava para o horizonte e ali fui percebendo que eu escreveria bem mais do que trabalharia em colheitas. Meu mundo estava ainda permeado por essas duas dimensões. Nesse entremeio, sempre vivia imaginando personagens, palcos, estúdios, gravações, enquanto cantava o dia inteiro”, acentua o alvariano.
Carmo: “Eu sou sãojuliãoense de nascença, mas a minha infância foi na região do Cariri, no sul cearense. Só no início da adolescência que retornei para o Piauí para fazer companhia ao meu pai, que já é idoso e vivia sozinho no meio rural. Eu passei todo o meu ensino médio na Unidade Escolar Estadual Aprígio Pereira Bezerra, em São Julião, e aqui criei fortes vínculos com toda a comunidade escolar e fiz bons amigos. Sempre recebi bastante apoio dessas pessoas, e sou muito grato por isso. Fui selecionado para participar no 2° ano do ensino médio de um projeto na cidade de Picos-PI, chamado Academia de Jovens Líderes, e lá eu e mais 14 jovens tínhamos aulas de liderança e fazíamos ações sociais. Durante o ano que participei, eu partia de um ambiente extremamente complexo que é a minha comunidade e ía para um local em que os assuntos lecionados eram de outra realidade. Falávamos sobre sonhos e oportunidades e isso me despertou. Eram três horas semanais de bastante aprendizado e injeção de ânimo e esperança.” relata o estudante.
Rômulo: “Em São Julião, sempre fui muito bem recebido e acarinhado pelos muitos professores, professoras, coordenadores e coordenadoras que tive. E olha que sempre falei demais. Não à toa. Mas porque, desde pequeno, tenho o pensamento acelerado. E também porque sempre amei televisão. Assisti e assisto muito. Amo teledramaturgia. E isso me rendeu ideias de criar histórias de suspense, enredos, como aconteceu em Cinzas de uma Mansão, meu primeiro romance”, esclarece o historiador.
Sonhos
Carmo: “Eu sou um menino que sonha muito alto, mas que fica feliz tomando café enquanto assiste a um programa na televisão com a família. Se pudesse encontrar duas características que mais estão presentes na minha jornada, seriam responsabilidade e criatividade. Acho que muitas coisas nos constituem, mas poucas nos definem, porém, se existe algo próximo a isso, com certeza são as nossas paixões. E eu sou apaixonado por criação e transformação, por Jornalismo e Comunicação, por escrita, audiovisual, música e meio-ambiente. Sabe a sensação do processo que envolve surgir algo na sua cabeça que ainda não existia diretamente no universo, e você o tira do imaginário e põe em prática? É o que mais gosto” disse.
Rômulo: “Concluí o ensino médio, já sabendo que meu lugar era a sala de aula e o campo da escrita mesmo com a colonialidade que o nosso país nunca superou e que tardará em superar. Lamentavelmente, enfrentamos uma massa muito expressiva, combativa e determinada a não se descolonizar e a viver, excepcionalmente, em função do dinheiro, do poder e da fama. Esquecem-se que é o amor e a ética que prevalecerão. Cursei História de 2016 a 2021, na querida Universidade Federal do Piauí, Campus Senador Helvídio Nunes de Barros, em Picos, de 2016 a 2021, e fui laureado pelo meu desempenho no curso. Lá, redescobri o mundo por meio de algo crucial: a empatia, e algo, de igual relevância, fundamental: a alteridade. Professores, amigos, colegas. Todas e todos me ensinaram muito. Isso é uma benção que levarei para sempre”, avalia Rômulo.
Antes de completar 19 anos, Carmo obteve destaque nacional, ao ganhar um concurso da Câmara dos Deputados, em Brasília, e, mais recentemente, internacional, após ser premiado pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o vídeo “Carta Aberta ao Passado”. O Human Rights Youth Challenge, em tradução livre: ‘Desafio Juvenil de Direitos Humanos’, é realizado anualmente pelo setor de água e saneamento do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Na sua quarta edição, a competição teve como tema “Mudanças climáticas e direitos humanos à água e ao saneamento”.
Carmo: “Eu sempre tive muita vontade de falar sobre os problemas da minha comunidade e do mundo como um todo. Então, quando eu soube da existência desse concurso, eu enxerguei nele a possibilidade de abordar temas muito importantes para todos, mas ainda mais importantes para as pessoas de onde eu venho, que já sofrem com problemas hídricos, e para os jovens da minha idade, porque somos nós que sentiremos na pele os efeitos danosos das mudanças do clima. Então eu vi nisso a combinação perfeita e a possibilidade de ser uma voz ativa podendo assim contribuir para esse debate.” explica.
Já o professor e escritor sãojuliãoense Rômulo Rossy lançou no dia 27 de novembro, seus dois novos livros: Luz no Horizonte (poesias) e Cinzas de uma Mansão (romance). Rômulo é membro e ocupa a cadeira n° 24 da Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR).
Rômulo: “Acredito que escritor é aquele que, observando o seio social em que vive, tem algo a descrever, narrar ou dissertar. É alguém que vive em alerta e exerce, com ardor, o ofício. Não um livro todo dia, mas um bom livro, no tempo certo. Não seria um escritor alguém que simplesmente escreveu um texto e o publicou. Acredito que essa alcunha é preciosa. Nem sei se a mereço, mas, mesmo assim, me atribuem. Hoje, tenho lançados quatro livros autorais: Além do Mais, de poesias; Sinais de Vida: reflexões de um leigo, de reflexões cristãs; Luz no Horizonte, de poesias, e Cinzas de uma Mansão, meu primeiro romance. E tenho duas obras das quais sou coorganizador: História em Crônicas e Histórias do Brasil: caminhos didáticos para abordagens históricas. Ao todo, são seis obras no meu currículo”, desvela o jovem.
Sobre a ALVAR, ele diz:
Rômulo: “Em 2020, passei a integrar, como membro fundador, a Academia de Letras do Vale do Riachão (ALVAR) onde encontrei grandes artistas e escritores. Ela foi um bálsamo face à pandemia da SARS-CoV-2, que ainda vivemos. Nela, participamos de desafios, compartilhamos poemas, crônicas e outros tantos textos dos mais variados gêneros discursivos. Ocupo a cadeira n° 24 e tenho por patrono meu padrinho e saudoso amigo José de Lima Cavalcante (Zé Abílio), ser humano ilustre e altamente respeitado por todo lugar onde passava, como professor, servidor público, engenheiro agrônomo, enfim, como uma pessoa autenticamente pública”, conta o alvariano.

Educação
Rômulo: “Por questões socioeconômicas, sempre estudei em escolas públicas, inclusive a universidade. Sou muito feliz por isso. Isso nos ajuda a valorizar o setor público e nos preocuparmos com o outro também. Não que o setor privado não faça isso. Mas é que, com o curso de História – que é altamente necessário ao mundo – aprendi ainda mais o valor que tem o próximo. Não tenho a desfaçatez de acreditar em meritocracia. Muitos têm altos talentos, mas não recebem apoio nenhum. Igualdade não é o mesmo que equidade. O Estado precisa oferecer condições às pessoas, aos estudantes, aos professores. Digo isso porque, em relação aos meus livros, eu e Deus sabemos da luta árdua que foi para tentar conseguir apoio para os lançamentos”, desabafa o escritor.
Carmo: “Eu não gosto muito da narrativa que costuma romantizar as limitações e dificuldades das pessoas que são oriundas de escolas públicas, quando essas conquistam algo na base da garra. Eu sou ciente da importância do ensino público na minha vida, e sobretudo da capacidade de transformação que a educação pública tem, mas esse ensino para ser de fato propulsor de transformações ele precisa ser de qualidade para todos. Porque enquanto os alunos de escolas públicas estiverem sempre atrás na corrida da vida, nós continuaremos sendo um país de exceções e de exclusões.” afirma o jovem.
Rômulo: “Herdeiros de um neocolonialismo que se imiscuiu a um neoliberalismo, importa aquilo que haverá lucro, retorno econômico. Por isso, muitos que ganham ênfase e sucesso – sem, é claro, retirar-lhes o mérito de suas obras – geralmente têm algum apadrinhamento – proveniente de uma herança de clientelismo e nepotismo que não foi superada no Brasil. Mas é sempre importante lembrar que existem as pessoas que, sinceras, nos reconhecem – os que já pertencem a outra classe -, nos incentivam, acreditam em sonhos que até nós mesmos deixamos de acreditar”, pontua Rômulo Rossy.
Fraternidade
Rômulo: “Carmo é um ser humano extraordinário. Altamente brioso, talentoso, ético e digno de todas as honrarias que tem recebido pelo seu trabalho de caráter universal. É uma honra indelével e inefável poder compartilhar da trajetória que ele vem construindo que, creio eu, ainda o alçará a voos bem mais altos. E o que é mais importante: nesses voos, ele sabe ser humilde, isto é, voltar e manter os pés no chão – disto o termo ‘húmus’, do grego. A ele eu saúdo e cumprimento como uma fonte de esperança aos jovens brasileiros e de todo o mundo porque, como comento sobre o que escrevo, o pendor dele não é para a gaveta, é para o universo”, ressalta sobre o amigo Carmo.
Carmo: “Rômulo é uma inspiração, sem dúvidas. Mesmo quando ainda não o conhecia de fato, já ouvia os que o conhecem falarem sobre a sua inteligência, generosidade e humildade. Portanto o enxergo como exemplo de personificação da benevolência e acredito de verdade que ele continuará trilhando caminhos de sabedoria, sucesso e sendo uma pessoa ativa na construção de um mundo melhor por meio da educação” enfatiza sobre o amigo Rômulo.
Futuro
Rômulo: “O meu recado é de esperança, do verbo esperançar, sempre, como dizia Paulo Reglus Neves Freire. Ele acreditava em uma educação libertadora, e eu também. Mas ela está longe de nós ainda. Espero que possamos, começando por nós mesmos, trilhar os passos que muitos autores que nos precederam deram-nos a bússola. Eles são um bálsamos para crianças, jovens, adultos, idosos, que já são o futuro”, diz o professor de História. Acreditem e não se acomodem. Pensem, escrevam, revisem, peçam ajuda, leiam, reescrevam. Vivam para além do existir. Resistir hoje é uma atitude política, soberana, impostergável e indeclinável. São Julião tem muitos e muitas criaturas que podem e devem exteriorizar o que sabem. Como dizia Michael Jackson e que eu gosto tanto de cantar: ‘nós somos o mundo, nós somos crianças, nós somos aqueles que podemos fazer o dia mais feliz'”, encerra o professor de História.
Carmo: “Eu acredito que o mundo não é um lugar ruim, o mundo está sendo um lugar complexo por conta de inúmeras coisas. Por isso eu ainda sonho com um futuro melhor e sustentável para todos. E como a gente sabe o sonho é a matéria-prima da transformação. O sonho é o motor da história. Todas as pessoas que já contribuíram com alguma mudança positiva em qualquer lugar do mundo, elas começaram sonhando com utopias, então não há mudança sem sonho. Então, por mais que sonhar alto seja algo difícil, que depende muito do contexto socioeconômico em geral, é uma tarefa necessária para quem quer alçar vôos altos. Continuemos sonhando! E executando o que almejamos. Eu sou muito esperançoso com o futuro, e esperançoso do verbo esperançar, como diria Paulo Freire.” Finaliza.
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